Blog Farmácia Postado no dia: 23 outubro, 2023

As Associações podem realizar o cultivo do Cannabis para fins medicinais?

Em decisão do STF, foi declarado o direito de Associação efetuar o cultivo e a manipulação da Cannabis exclusivamente para fins medicinais e para destinação a pacientes associados a ela ou a dependentes destes que demonstrem a necessidade do uso do extrato, nos termos da fundamentação.

Na decisão o Ministro justificou que a Convenção Única sobre Entorpecentes de 1961, promulgada pelo Decreto n. 54.216/1964, reconheceu que a toxicomania é um grave mal e constitui um perigo social e econômico para a humanidade, devendo haver uma ação conjunta e universal para reprimir o uso ilícito de entorpecentes. No entanto, em seu preâmbulo, previu “que o uso médico dos entorpecentes continua indispensável para o alívio da dor e do sofrimento e que medidas adequadas devem ser tomadas para garantir a disponibilidade de entorpecentes para tais fins”. Nessa mesma linha caminhou a Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas de 1971, promulgada no Brasil pelo Decreto n. 79.388/1977, que, apesar de demonstrar preocupação com os problemas sociais e de saúde pública que resultam do abuso de substâncias psicotrópicas, exigindo medidas rigorosas para restringir o seu uso e para combater o tráfico ilícito, também expressamente reconheceu, em seu preâmbulo, “que o uso de substâncias psicotrópicas para fins médicos e científicos é indispensável, e que a disponibilidade daquelas para esses fins não deve ser indevidamente restringida”. A própria Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas) preconizou, em seu art. 2º, parágrafo único, a possibilidade de a União autorizar “o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas”. Os vegetais referidos no caput são aqueles dos quais possam ser extraídas ou produzidas drogas.

A própria legislação que proíbe o cultivo da Cannabis abriu exceção quando esse cultivo for destinado a fins terapêuticos, ficando o Estado responsável por adotar as medidas necessárias e adequadas para a fiscalização tanto da atividade de plantio quanto de colheita e extração das substâncias que servirão para fins medicamentosos, de forma a evitar que essa atividade desborde da sua finalidade social.

Igualmente, a Convenção sobre os Direitos da Criança com Deficiência, incorporada ao Direito Brasileiro por meio do Decreto n. 6.949/2009, trouxe à tona a responsabilidade dos Estados Partes de tomar as medidas efetivas e apropriadas “para possibilitar que as pessoas com deficiência conquistem e conservem o máximo de autonomia e plena capacidade física, mental, social e profissional, bem como plena inclusão e participação em todos os aspectos da vida” (art. 26). Inclusive, em seu art. 25, estatuiu que “Os Estados partes reconhecem que as pessoas com deficiência têm o direito de gozar do estado de saúde mais elevado possível, sem discriminação baseada na deficiência. Os Estados Partes tomarão todas as medidas apropriadas para assegurar às pessoas com deficiência o acesso a serviços de saúde, incluindo os serviços de reabilitação, que levarão em conta as especificidades de gênero”.

A Constituição Federal elencou o direito à saúde como um dos direitos sociais (art. 6º, caput ). Em seu art. 196, caput, estatuiu que “A saúde é direito de todos e dever do Estado”. A Carta Magna, também, estabeleceu ser inafiançável e insuscetível de graça ou anistia o crime de tráfico de entorpecentes e drogas afins (art. 5º, XLIII), mas deixou às Leis Ordinárias a definição do que seriam esses crimes de tráfico de drogas. Assim, a Lei n. 11.343/2006 (Lei de Drogas), em cotejo com a previsão constitucional do direito à saúde, trouxe a possibilidade de a União Federal autorizar o plantio, a cultura e a colheita da Cannabis exclusivamente para fins medicinais ou científicos, sem que isso pudesse ser enquadrado como crime de tráfico.

A decisão ainda traz a concluso que, a discussão sobre os riscos do uso dessas substâncias para fins medicinais se torna irrelevante e os riscos propriamente ditos insignificantes diante da melhora da qualidade de vida obtida em quadros tão graves e incapacitantes.

Não entrando no mérito da questão, mas ao mesmo tempo que existe a liberação de cultivo e manipulação da Cannabis pelas Associações, as farmácias de manipulação que possuem uma série de exigências, controle, equipamentos e profissionais capacitados, com curso superior, continuam proibidas de realizar a manipulação do mesmo insumo.

Destaca-se ainda, que diferente da decisão emitida pelo Supremo Tribunal Federal, as farmácias não realizam o cultivo, caindo por terra qualquer alegação de desvio de finalidade do insumo, já que este insumo, como qualquer outro incluído na Portaria 344/98, que trata dos medicamentos sob controle especial, é adquirido de fornecedor qualificado, devendo seguir todos os procedimentos previstos pela Anvisa.

Como declarou o Ministro Edson Fachin: “Resta inconteste que o tratamento à base de substâncias extraídas da Cannabis é cientificamente reconhecido e eficaz. A própria ANVISA autorizou a importação dessas substâncias e aprovou a fabricação (com insumo importado) e a comercialização de fármaco à base de Cannabis por farmácias sem manipulação ou drogarias. Se não houvesse o reconhecimento de sua eficácia pela própria Agência Reguladora, não se teria caminhado nesse sentido.”

Dessa forma, não existe qualquer fundamento lógico para que seja negada a autorização para as farmácias realizarem a manipulação dos fitofármacos derivados da Cannabis, sendo um retrocesso à Saúde Pública qualquer decisão contraria a manipulação desses medicamentos.

Curitiba-PR, 20 de outubro de 2023

Flávio Mendes Benincasa
OAB/PR 32.967, OAB/SP 166.766, OAB/MG 164.652, OAB/RJ 223.449, OAB/DF 61.671, OAB/RN 20687-A, OAB/GO 68172 e OAB/CE 50168-A