Artigo Postado no dia: 16 outubro, 2025

Bloqueios no Programa Farmácia Popular: dever de celeridade administrativa e limites ao poder fiscalizatório

É recorrente que a União determine o bloqueio de acesso ao sistema do Programa Farmácia Popular e, após a notificação da restrição, não adote medidas concretas para instruir e concluir as apurações de eventuais irregularidades. Esse hiato decisório, além de colidir com princípios estruturantes da atividade estatal, transfere indevidamente ao particular o custo econômico e reputacional da inércia administrativa. Em um ambiente regulatório que exige previsibilidade e segurança jurídica, a demora injustificada converte uma medida cautelar legítima em um gravame desproporcional.

A Administração Pública, especialmente quando exerce poder de polícia e adota medidas restritivas de direitos, está vinculada à eficiência prevista no art. 37, caput, da Constituição da República. Esse parâmetro não é decorativo: impõe a obrigação de decidir em tempo razoável todas as questões submetidas à apreciação administrativa. Com a EC 45/2004, a razoável duração do processo consolidou-se como direito fundamental (art. 5º, LXXVIII), alcançando tanto o âmbito judicial quanto o administrativo. Assim, o transcurso indefinido do tempo não é uma variável neutra; ele corrói a legitimidade da atuação estatal e viola prerrogativas básicas dos administrados.

A Lei 9.784/1999, diploma de regência do processo administrativo federal, reforça essa diretriz ao estabelecer, em seus arts. 48 e 49, o dever de a Administração decidir solicitações, reclamações e processos em até 30 dias, com eventual prorrogação desde que devidamente motivada e proporcional. Em outras palavras: a regra é a tempestividade; a exceção é a dilação, que exige justificativa concreta, aderente aos fatos e ao interesse público, nunca uma autorização tácita para a paralisia.

É verdade que os atos administrativos gozam de presunção de legalidade e legitimidade. Contudo, trata-se de presunção relativa, suscetível de afastamento quando evidenciadas ilegalidade, desvio de finalidade, desproporcionalidade ou vício de competência. A discricionariedade administrativa — especialmente em matéria fiscalizatória ou sancionadora — não confere carta branca para omissões ou atrasos indefinidos. O controle jurisdicional é legítimo precisamente para reconduzir a atuação estatal ao trilho da legalidade e da proporcionalidade quando a cautela se converte em pena antecipada pela via da inércia.

Sob a ótica econômica e concorrencial, a manutenção do bloqueio por lapsos extensos sem a devida instrução processual distorce o mercado e impõe custos não internalizados pelo Estado: interrupção de fluxo de recebíveis, perda de clientela e reputação, risco de descontinuidade operacional, além de assimetria competitiva entre agentes sujeitos a tratamento desigual em razão do tempo administrativo, e não de critérios jurídicos objetivos. Na prática, a medida cautelar — que deveria ser proporcional, motivada e instrumental à apuração — torna-se um fim em si mesma, invertendo a lógica garantista do processo administrativo.

Ainda que normas específicas do Programa Farmácia Popular não definam prazos peremptórios para a conclusão de apurações, não se extrai daí uma discricionariedade absoluta quanto ao tempo de agir. O poder-dever fiscalizatório é, por definição, juridicamente balizado: deve ser exercido com eficiência, motivação explícita, proporcionalidade entre a restrição e a finalidade pública e observância da duração razoável do processo. A ausência de um prazo expresso no regulamento setorial não autoriza a perpetuação do bloqueio sem a correspondente entrega decisória.

A inércia estatal, nesse contexto, configura ilegalidade por omissão. Se a União bloqueia, deve instaurar, instruir e decidir. O binômio bloqueio sem apuração célere subverte o devido processo legal administrativo. Não por acaso, as decisões judiciais têm reconhecido a validade do bloqueio cautelar como ferramenta de tutela do interesse público, mas condicionam sua permanência à conclusão do procedimento dentro de um intervalo razoável, que, de modo recorrente, orbita entre 30 e 90 dias. Ultrapassado esse marco sem justificativa idônea, ganham densidade jurídica medidas como a determinação de conclusão em prazo certo, a mitigação ou suspensão dos efeitos do bloqueio por desproporcionalidade e, nos casos comprovados de dano, a própria responsabilização estatal.

Do ponto de vista da governança administrativa, boas práticas recomendam a adoção de cronogramas de instrução com marcos internos verificáveis, comunicação ativa com o administrado e decisões parciais que indiquem o estado da arte da apuração. A motivação deve ser contemporânea e específica, explicando não apenas o porquê do bloqueio, mas também o plano procedimental para sua revisão, inclusive quando houver necessidade de dilação motivada do prazo originalmente previsto. Essa abordagem mitiga riscos de litígio, reduz passivos e reforça a credibilidade regulatória.

Para as empresas afetadas, a estratégia jurídica eficaz passa por documentar a linha do tempo dos atos administrativos, provocar formalmente a decisão (com fundamento nos arts. 48 e 49 da Lei 9.784/1999), requerer vista e produção de provas pertinentes, demonstrar o impacto econômico mensurável do bloqueio e, se necessário, levar ao Judiciário a discussão sobre excesso temporal, falta de motivação ou desproporcionalidade. O objetivo não é inviabilizar a fiscalização — que é legítima e necessária —, mas reconduzi-la ao patamar constitucional de eficiência e razoabilidade.

Em síntese, o bloqueio no Programa Farmácia Popular pode ser juridicamente válido como medida cautelar, desde que mantenha sua natureza instrumental e seja acompanhado de apuração e decisão em tempo razoável. A Constituição e a Lei 9.784/1999 estabelecem um vetor claro de celeridade e efetividade decisória. Quando a Administração se afasta desse vetor, sobretudo ao exceder lapsos que gravitam entre 30 e 90 dias sem fundamentação robusta, abre-se espaço para a intervenção judicial destinada a restaurar a proporcionalidade, a legalidade e a segurança jurídica. Trata-se, ao fim e ao cabo, de garantir que a tutela do interesse público não se converta, por omissão, em restrição desmedida ao exercício regular da atividade empresarial.

Curitiba-PR, 14 de outubro de 2025

Flávio Mendes Benincasa
OAB/PR 32.967, OAB/SP 166.766, OAB/MG 164.652, OAB/RJ 223.449, OAB/DF 61.671, OAB/MS 29.802-A, OAB/GO 68172 e OAB/CE 50168-A